sábado, 12 de fevereiro de 2011

Lembro-me


Lembro-me de ser pastor, isolado nas serras, onde só via Homens quando a Mãe Terra com a neve e a chuva me obrigava a procurar abrigo…
Falava com a águia e com o cordeiro, bebia água do rio ou dos troncos ocos, e comia o que a terra me dava… A minha arma era o meu cajado, e o meu inimigo era o Lobo.
Um dia vieram homens estranhos que vestiam couro e metais brilhantes. A morte desceu dos céus… Queriam que desse os meus animais e as minhas peles! Queriam que oferecesse tudo a um César e a um Júpiter, e que obedecesse aos que vieram com eles… Tiraram-me a minha liberdade, não podia mais andar pelos montes ou falar com a águia.
Como eu havia muitos, e muitos morreram… Ouvi um dia as palavras sábias de um homem a quem chamavam o Lusitano. Juntei-me a ele, e de pastor passei a guerreiro; deixei o cajado e segurei a espada.
Lutei com valor a seu lado, vencemos muitas batalhas, e uma mão cheia de pastores ensinou a guerra ás Legiões. Mas a sedução foi maior para alguns, e veio a traição. Morremos os dois pela Espada, tal como vivemos…

Lembro-me também de um dia acordar vestido com serapilheira e metal pobre, a segurar uma lança. Nas minhas vestes tinha o azul e o branco pintados.
Olhei para trás e vi um homem pequeno de tamanho, mas enorme na altivez. Montava um cavalo branco, usava metal brilhante e uma espada do seu tamanho, no seu escudo estavam cores iguais ás minhas.
Lutamos lado a lado, dias sem fim, em frente a um grande castelo a que mais tarde demos o nome de um santo. Ao fim de alguns meses conseguimos entrar no castelo, por cima do corpo de um amigo. Lutámos nas ruas contra homens de branco, tez escura, e com armas estranhas, e no fim ajudei o cavaleiro a entrar no palácio… Foi um bom dia…
Agradecido com a sua ajuda fez-me seu pajem. Mas um dia enviou-me com outros á procura de um homem a quem chamavam santo. Vestimos um manto branco com uma cruz vermelha. Deram-nos ordens e uma Regra dura de cumprir, mas mesmo assim seguimos os cavaleiros de branco.
Um dia o homem a quem chamavam Santo falou comigo. Disse ser um dos Irmãos de Hugo de Payens. Ensinou-me a lutar a cavalo e a pé, com tudo e sem nada.
Fez de mim cavaleiro, e também eu usei o escudo e as vestes brancas numa terra longínqua, onde o calor e o vento me traziam cheiros doces e amargos que nunca senti…
Lutei e quase morri nas mãos de guerreiros iguais aos do castelo. Fui preso. Passei fome e sede. Até que um dia me libertaram com um irmão numa terra sem nome. Sem água e sem comida rezámos pela vida… Mas a morte chegou primeiro…

Mais tarde lembro-me de acordar num comprido e fundo buraco, onde a lama se misturava com humanos dejectos. O cheiro putrefacto misturava-se nas nuvens com o cheiro a pólvora, e pairava sobre campos de morte.
Tinha galões nos ombros, mas pouco me valiam… Tudo acabava à minha volta em bolas de fogo. Vi homens velhos a chorar, vi homens novos a ficar velhos, e a todos vi desaparecer no ar em bolas de fogo e terra…
Lutámos de noite e de dia. Gente que não conhecíamos mandou-nos matar e morrer… E ninguém percebia porquê… Chamaram-lhe uma Grande Guerra… Mas de grande só teve a Morte… Não me lembro de um dia em que não tenha chorado por viver…

Ontem acordei quase sozinho à beira de um caminho no meio da selva. Estava quente e húmido, mal se conseguia respira. As roupas pesavam e as armas já faziam feridas nas mãos… O ambiente era tão pesado, que parecia que a própria selva nos queria comer.
Esperámos 2 dias por homens que não vieram, até que os caçadores se tornaram presas quando por trás de nós no meio da selva surgiram fantasmas em figuras de Homens…
Durante 2 horas o barulho das armas não parou… Sozinhos, o apoio nunca chegou… A protecção a Generais era mais importante! Aviões e helicópteros não chegavam lá…
Ferido vi cair um, depois outro, e mais um… Depois, tal como começou acabou, e leves como vieram, os fantasmas desapareceram no mato…
Andámos cinco quilómetros com os nossos ás costas, até sermos evacuados por alguém que preferiu ignorar ordens…
A minha revolta levou-me à cadeia . Uma prisão na mesma África da qual nunca saí… Aquela selva matou-me aos poucos, mas o Golpe de Misericórdia foi saber que a traição tinha matado os meus camaradas numa operação que nunca existiu…

Hoje acordo cansado e por vezes não sei onde estou. Fisicamente estou “aqui e agora”, mas cansado não consigo saber onde…
Ao fim de mais de dois mil anos continuo a lutar e a fazer “guerra”, mas desta vez sem armas e contra um Inimigo desconhecido ou indefinido…
Hoje luto contra a Mortalidade do Corpo e da Alma. Luto contra a resignação e o conformismo… Luto por Virtudes e Princípios que regem a minha vida…

Mas acima de tudo Luto contra mim e a minha própria hipocrisia e imperfeição…